18/09/2021
Fonte: ConJur
Os fundos de pensão foram desenvolvidos com melhor estrutura primeiramente nos países anglo-saxões de origem beveridgiano. Isso se deu visto que benefícios previdenciários básicos, lineares e mais modestos, criavam clima mais propício para a implementação de regimes complementares. Os fundos de pensão e os trust foram as estruturas jurídicas escolhidas precipuamente para cumprir este papel. Nossa intenção, ao examinar a jurisprudência da Suprema Corte americana, consiste em pôr em evidência a influência no mundo jurídico que tais julgados representam. Ademais, é inegável que os Estados Unidos representam o nascedouro dos fundos de pensão com mercado e modelo bastante desenvolvido e que opera como paradigma para todos os outros países que houveram por bem estruturar planos de previdência privada.
Para entender como a Corte Suprema americana interpreta o regime de previdência privada nesse país, é necessário, inicialmente, entender a exata natureza jurídica conferida pela Corte à Social Security Act, lei de 14 de agosto de 1935 que inaugurou formalmente o uso do termo “seguridade social” em todo o mundo. Assim, é a partir do judgment trilogy, ou seja, da trilogia de casos julgados em 24 de maio de 1937 questionando a constitucionalidade da lei de 1935, que poderemos extrair os elementos iniciais da presente demonstração.
De tal modo, nos acórdãos Carmichael v. Southern Coal & Co., Steward Machine Co. v. Davis e Helvering v. Davis, a Suprema Corte americana julgou constitucional a referida Social Security Act de 1935. Em breves palavras, os dois primeiros casos eram oriundos do Alabama e diziam respeito ao questionamento das contribuições por empresas cujo objetivo era financiar os benefícios de seguro-desemprego. No caso Helvering v. Davis, originalmente de Boston, os dispositivos questionados eram as contribuições sociais para financiar o regime de aposentadorias. O móvel principal de todas as decisões teve como primado o artigo 1º da seção 8º da Constituição Americana, que afirma: “The Congress shall have Power To lay and collect Taxes, Duties, Imposts and Excises, to pay the Debts and provide for the common Defence and general Welfare of the United States; but all Duties, Imposts and Excises shall be uniform throughout the United States“. A constitucionalidade do sistema de seguridade social americano baseia-se no poder fiscal do Estado de estabelecer contribuições sociais e demais contribuições com o objetivo de proteger o bem-estar social (welfare) geral.
Com efeito, podemos questionar se entre o conceito constitucional de seguridade social nos Estados Unidos e o previsto na Constituição do Brasil, para além dos 200 anos que lhes separam, pairam diferenças. A resposta é, por certo, positiva.
Todavia, quanto à natureza da relação jurídica previdenciária pública em particular, podemos dizer que são bastante próximas. Trata-se de direito de estrita configuração legal, não contratual, e que somente em certos casos é de se dizer que haveria a criação de direitos subjetivos. É o caso do regime de aposentadorias. Quando alguém passa a contribuir para o sistema público, não se pode afirmar que tal sujeito já se ache investido da qualidade de titular de direitos adquiridos. Pelo contrário. O legislador, diante das mudanças na sociedade, é competente para modificar a legislação e adaptá-la aos desafios de seu tempo. Mesmo após a concessão da prestação o direito adquirido não é absoluto. Outros elementos podem influenciar, como por exemplo a crise real entre as gerações no sistema de repartição que autorizaria a aplicação de nova contribuição social tendo como base de cálculo a própria prestação de aposentadoria.
Nos Estados Unidos, a natureza jurídica da relação entre o segurado e o sistema de seguridade social foi apreciada no case Flemming v. Nestor, de 20 de junho de 1960. Ephram Nestor, migrante búlgaro que chegou aos Estados Unidos em 1913 e lá viveu até 1956, quando foi expulso do país. Na época os Estados Unidos viviam a era do “macarthismo” e Ephram Nestor, segundo as evidências do julgamento, teria sido membro do Partido Comunista entre 1933 e 1939. Esse mesmo Ephram Nestor vivera 43 anos na América e entre 1936 e 1955 pagou contribuições sociais para constituição de sua aposentadoria (Federal Insurance Contributions). Em 1954, o Congresso dos Estados Unidos aprovou lei determinando que qualquer pessoa que fosse expulsa do país por causa de seu relacionamento com o Partido Comunista teria seu direito aos benefícios retirados, mesmo que tivesse base contributiva.
Em 1956, o governo notificou a esposa de Ephram Nestor, que permaneceu no país, informando-a de que não teria mais direito às prestações pagas pela seguridade social. O Tribunal Federal do Distrito de Colúmbia foi então acionado e considerou inconstitucional a alteração feita em 1954. Para essa instância, a reforma legislativa teria violado a 5ª Emenda, que dispôs: “No person shall be (…) deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation”» e que portanto essa alteração deveria ser declarada “(…) unconstitutional under the Due Process Clause of the Fifth Amendment in that it deprived appellee of an accrued property right. (…)“ . O raciocínio considerou que os benefícios pagos pela previdência social americana criavam espécie de “direito de propriedade adquirido” aos beneficiários.
A Suprema Corte foi acionada pelo governo e a decisão da Corte de Columbia foi anulada por cinco votos a quatro para confirmar a constitucionalidade da reforma de 1954 e a anulação da aposentadoria de Eprham Nestor. O ponto-chave do acórdão é a afirmação de que a relação jurídica de seguridade social é relação jurídica legal e não contratual, que não se caracteriza como direito de propriedade. O legislador fica assim autorizado a alterá-lo. Essa decisão, que teve como relator o juiz John Harlan, aproveita os precedentes da “trilogia” de julgamentos sobre a constitucionalidade da lei de seguridade social de 1935 para fazer descrição exemplar do verdadeiro conceito de seguridade social e de inexistência de direitos subjetivos, isto é, direito adquirido.
A corte considerou, destarte: 1) que a natureza do regime de seguridade social impede a sua analogia ao criar direitos de propriedade adquiridos; 2) que o regime de previdência social é legal e não contratual. Ademais, que a seguridade social é constituída por regimes caracterizados como seguros sociais e não como regimes privados. Para os juízes americanos, o seguro social não pode ser considerado da mesma natureza que as annuitys, que são formas contratuais privadas, enquanto os benefícios da previdência social são de natureza legal e variam de acordo com a vontade da sociedade, representada pelo Parlamento.
Em outro caso histórico, United States v. Cleveland Indians Baseball Co., de 17 de abril de 2001, a Corte Suprema decidiu claramente que o conceito de benefícios previdenciários da seguridade social não deve ser confundido com a natureza jurídica dos benefícios pagos pelos planos de previdência privada, principalmente pelo fato daqueles não produzirem direito de propriedade sobre os benefícios. : “Although Social Security taxes are used to pay for Social Security benefits in the aggregate, there is no direct relation between taxes and benefits at the level of an individual employee. As the Company itself acknowledges, ‘Social Security tax ‘contributions,’ unlike private pension contributions, do not create in the contributor a property right to benefits against the government, and wages rather than [tax] contributions are the statutory basis for calculating an individual’s benefits.’ Brief for Respondent”.
Sob a perspectiva jurídica, os fundos de pensão e a previdência complementar no Estados Unidos não podem ser qualificados como componentes do sistema de seguridade social. Nesse país, o regime de previdência privada, regulado pela ERISA, é, no limite, classificado como programs related to social sécurity. Não são elementos que integram ou são regidos pelos princípios da seguridade social. A relação de fato dos fundos de pensão com a previdência social seria bastante indireta. A legislação norte-americana andou bem em separá-los claramente.